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A última viagem de Manga 5j5624

Todo jornalista sabe o quanto é difícil vender uma pauta e/ou convencer seus companheiros de redação a apostarem em uma ideia, a princípio maluca. Comigo não foi diferente quando coloquei na cabeça que iria para Quito, no Equador, resgatar uma lenda esquecida do nosso futebol.

Tudo começou quando soube, por meio do sociólogo Paulo Escobar, que o sonho de Manga era visitar o Brasil e pela última vez ver seu Botafogo jogar.

Essa era a pauta: trazer Manga para o Brasil em no máximo quatro dias para realizar seu último sonho, segundo o próprio ex-goleiro.

Sorte a minha que tenho na chefia gestores sensíveis que acreditaram na ideia quase insana, pois para você ir até à capital equatoriana é preciso ter uma boa verba para realizar o que só seria mais uma reportagem especial.

A ida ao Equador 6o3m21

Assim, partimos eu e o repórter cinematográfico Fábio Lonardi, o Fabão, para Quito. Embarcamos em Guarulhos, e as cenas aqui no Brasil já eram quase de pânico, tudo porque a impiedosa COVID-19 ameaçava a vida global.

Fomos em 9 de março de 2020. No aeroporto internacional, já sentíamos um certo medo daqueles que circulavam em Guarulhos. Muita gente com máscara, mas ninguém certamente imaginava as quase 700 mil mortes que teríamos apenas no Brasil.

Depois de ar pelo Panamá, pegamos outro avião para a cidade com 2,8 mil metros e trá-lá-lá de altitude.

O pedido emocionado de Manga 5w506f

No dia seguinte, ansioso para que encontrássemos o grande Manga, partimos para o bairro de Pichincha, onde aquele senhor vivia de aluguel com a esposa Maria Cecília Cisneros.

Frente a frente com o monstro dos dedos tortos e extremamente emocionado, começamos a entrevista.

No meio dela, a surpresa. Manga começou a chorar e pediu para que o ajudássemos a arrumar uma casita assim que ele chegasse ao Brasil, a fim de ar os últimos dias de sua vida.

E se tem uma coisa que eu não consigo separar no jornalismo é a emoção, ainda mais vendo e gravando um senhor de 82 anos chorando como criança.

Terminada a entrevista, pedi para o Fabão fazer as imagens de cobertura, fotos, reações, enfim... Saí da pequena casa para refletir como poderia ajudar, já que estávamos lá e já que a emissora havia comprado as agens dele e da esposa para ir ao Brasil e, em seguida, retornar ao Equador.

Foi aí que me lembrei do Retiro dos Artistas, no Rio de Janeiro, e de seu presidente, o fantástico ator Stepan Nercessian. Um botafoguense roxo e uma alma supercaridosa e preocupada com a memória dos nossos artistas.

"Golaço, Fabão!" 354r5r

Nossa viagem de volta ao Brasil estava marcada para a noite do dia 12. Na manhã do mesmo dia, Stepan atendeu ao pedido. A ideia era colocá-lo como o primeiro residente do futebol na instituição. No carro, em direção à casa de Manga, gritei: "Golaço, Fabão!". E a pauta mudou a partir dali.

Ao buscar Manga e a esposa já para a viagem ao Brasil, amos em um restaurante onde almoçamos todos os dias. Lembro até que Cecília me recomendou fritada, um delicioso prato local.

Estranho foi chegar ao restaurante, sempre lotado, mas daquela vez vazio, com o dono de olhos arregalados com o anúncio da pandemia.

Sem jamais ar pela minha cabeça o negacionismo, juro que pensei o tempo todo de forma positiva para que chegássemos ao Brasil com nossas saúdes em dia, mas não tinha jeito, o medo assolou.

As sair do restaurante, com as ruas completamente vazias, avistamos um funeral em que equatorianos carregavam um caixão fúnebre pela avenida.

A volta ao Brasil 722c4d

No aeroporto, também praticamente vazio, acredito que fizemos parte do último voo com saída de Quito para outro país.

Meu maior temor era que o maldito vírus pegasse Manga e Cecília, pois o casal já tinha idade avançada. No voo até o Panamá, tudo bem. Avião vazio com a tripulação tentando amenizar o sofrimento dos poucos ageiros que não sabiam se seriam infectados ou não.

A tranquilidade durou pouco. Quando chegamos ao Panamá, estava um caos para voltar ao Brasil. Tudo porque o avião que nos levaria estava lotado de turistas vindos dos Estados Unidos.

Solicitamos que Manga usasse máscara, e assim ele o fez.

Desembarcamos no Rio de Janeiro na sexta-feira, 13 de março de 2020.

Manga no Rio de Janeiro 411b16

Levamos Manga, no mesmo dia, a um treino do Botafogo para falar com Paulo Autuori, Gatito Fernández, enfim, para ser recebido pelos atletas do Fogão que iria jogar com o Bangu no domingo seguinte.

Levamos também o ex-goleiro para reencontrar o filho que ele não via há anos.

Manga não estava bem financeiramente. Para se ter uma ideia, o único dinheiro que ele levou para a viagem eram US$ 10. Mesmo assim, até ali, não falei nada para o casal que eles seriam recebidos para morar no Retiro dos Artistas.

Assim como muitos jogadores, Manga não se programou para a aposentadoria. Ainda jogador, se envolveu com jogos e cassinos, nos quais torrou parte de suas economias.

Teve até um dia, antes do encontro com Stepan, que Manga me chamou no quarto pedindo US$ 500, um pedido impossível de atender. Mas a mudança de pauta já transformaria a vida dele.

A grande surpresa i4i5m

Na segunda, dia 16 de março, levamos o casal para a grande surpresa. Stepan e equipe do Retiro dos Artistas aguardavam para o anúncio.

Manga mais uma vez se emocionou com a tão sonhada casita.

Stepan só pediu para que fizéssemos uma campanha para reformar e mobiliar a nova casa do casal.

Foi uma mobilização fantástica. Em dois dias, arrecadamos R$ 17 mil, com ajuda de jornalistas como como Paulo Vinícius Coelho, o PVC, Milton Neves e outros artistas do Rio, além da torcida que também vestiu a camisa de Manga.

Era só alegria até que descobrimos que o aeroporto de Quito estava fechado por conta da COVID-19.

E agora? O que fazer com Manga e Cecília, que voltariam para o Equador no mesmo dia 16?

Mais uma vez, sorte do repórter que foi acolhido pela ESPN e sua diretoria, e sorte do Manga, que ficou por quase três meses em um hotel quatro estrelas com tudo pago até que a casita pudesse ser reformada e habitada.

Com todo esse histórico, é impossível separar o profissional jornalista do carinho e da gratidão que adquiri pelo ídolo de tantos times.

Manga e Cecília foram morar na casita dos sonhos.

A mudança e a viagem final 1a5b56

Acostumado com um luxo que há décadas não tinha mais, logo começou a reclamar da distância da residência, que fica mesmo bem distante do portão de entrada do Retiro; logo, disse que não gostava da comida que era feita para todos os artistas residentes; e, logo, decidiu sair de lá para morar em um apartamento melhor, que, segundo Cecília, o presidente do Botafogo iria doar.

Confesso que não entendi direito porque o casal quis sair de um lugar onde eles tinham tudo, plano de saúde de graça, cinco alimentações por dia, sem custo de luz, água, enfim...

Faz um ano que perdi o contato com os dois, mas lembro com carinho de quando o casal me chamava de hijo pustiço.

Com o plano de saúde, Manga fez várias cirurgias no intestino, mas eu sabia que o câncer não lhe daria uma vida longa. Assim como outro grande amigo, Wlamir Marques, Manga morreu aos 87 anos nesta terça-feira, 8 de abril de 2025.

Ficam as memórias de um goleiro lendário, ídolo de Botafogo e Internacional, e vai-se embora o homem, um cara cheio de erros e acertos, como todos nós.

Descanse em paz, lenda de grandes mãos, defesas e dedos quebrados bravamente.