Finalista da Copa da Liga Escocesa, o Livingston FC tem uma bela história de segundas chances. 16n3s
A modesta equipe de West Lothian vive grande momento junto ao seu treinador, um ex-detento que hoje sonha com a redenção em forma de troféu e uma vaga na Europa League.
Dias antes do maior jogo de sua carreira, o técnico David Martindale conversou com o ESPN.com.br e contou sua história, que começa na cela de uma penitenciária de Glasgow e chega ao gramado do Hampden Park, onde, neste domingo, às 11h (de Brasília), o Livingston disputará a grande decisão contra o St. Johnstone.
A façanha teve início em 2014, quando o ex-presidiário, buscando reinserção social, assumiu um cargo de voluntário recolhendo cones nos treinamentos do Livingston, então na 2ª divisão da Escócia.
O trabalho era simples, mas representava um novo começo. Depois de uma pena de seis anos e meio por tráfico de drogas, Martindale estava obcecado em transformar sua vida.
Apaixonado por futebol como tantos outros garotos, ele havia jogado nas categorias de base do Rangers e do Motherwell quando jovem. As dificuldades financeiras, porém, levaram-no por outro caminho.
"Durante minha juventude, havia muita pobreza onde eu cresci", contou, durante entrevista concedida por vídeo após o treino da equipe.
Aos 30, ele conheceu o resultado de escolhas erradas. O ano era 2004. O Livingston comemorava seu único título de Copa da Liga, mas Martindale, cuja história ava longe do futebol, estava deitado em uma cela, decidido a fazer tudo o que pudesse para salvar a própria vida.
"Foi um momento terrível”, diz. “Mas eu lembro de pensar: 'preciso mudar minha vida, preciso mudar minha vida'. Foi decisivo para mim", relatou.
A mudança veio quando o Livingston abriu-lhe as portas do Almondvale Stadium, em 2014.
"Eu cheguei para ajudar. Pegava as bolas, juntava os cones. Apenas ajudava os treinadores", rememorou.
Com a queda do time à 3ª divisão, dois anos mais tarde, algumas mudanças precisaram ser feitas no departamento de futebol. Martindale foi a solução caseira para a vaga de assistente técnico. Além do cargo de auxiliar, ele assumiu como diretor e ficou responsável pelo recrutamento de jogadores.
O teste deu certo e, em duas temporadas na função, o ex-detento ajudou o pequeno clube a voltar à elite, conquistando os consecutivos.
Ficou claro que a instituição havia encontrado alguém com muito potencial. E para valorizá-lo, ofereceram-lhe a posição de treinador principal.
Ele recusou. Com pouca experiência, não se sentia pronto, e temia atrapalhar o projeto que vinha sendo desenvolvido.
"Eu não havia trabalhado ainda na 1ª divisão, e senti que não era uma boa jogada para mim e nem para o clube. Então eu disse 'obrigado, mas não, obrigado'", brincou.
A humildade manteve o auxiliar em sua função, atuando ativamente em cada janela de transferências para fortalecer o elenco, driblando as dificuldades impostas pelo menor orçamento da liga.
Ainda que o lado financeiro não permitisse sonhar tão alto, o Livingston conseguiu se manter na Premiership, a principal prateleira do futebol escocês, desde então. Mas em novembro de 2020, quando o treinador Gary Holt se despediu, o cargo ficou vago novamente. E Martindale ganhou mais uma chance.
"Quando recebi a oferta em 2020, eu já estava trabalhando na 1ª divisão há dois anos e meio. Naquele momento, me pareceu a decisão correta para mim e para o clube", explicou.
"Eu estava bastante animado para assumir", exaltou.
Quatro meses no comando podem não ser muito tempo, mas o técnico já tem muito o que celebrar. A 5ª colocação na liga nacional credencia a equipe a brigar por vagas em uma competição europeia. E a final da Copa da Liga, neste domingo, pode dar ao Livingston um título vencido apenas uma vez, lá no fatídico ano de 2004.
Para David Martindale, é muito mais que um sonho. É a 2ª chance de escrever sua história.
Anos de cárcere v1e3e
"Em abril de 2004, fui detido tentando arranjar um dinheiro extra. E em outubro de 2006, acabei condenado a seis anos e meio de prisão pelo fornecimento de drogas", contou Martindale, que, na época, gerenciava um pub.
"Minha motivação era financeira, não vou mentir. Estava tentando salvar um dos meus negócios, que não estava indo bem", salientou.
Entre a 1ª prisão e a sentença, Martindale ou dois anos e meio em condicional. Consciente de que precisava buscar uma saída do crime organizado, ele se matriculou na Universidade Heriot-Watt, em Edimburgo.
Pouco antes de colocar as mãos no diploma, foi posto atrás das grades. O juiz havia determinado a pena, e não cabia recurso. Seus próximos anos foram vividos entre os muros da penitenciária de Barlinnie, em Glasgow, a poucos quilômetros do Celtic Park, o estádio do tradicional Celtic FC.
"Minha prisão foi um momento decisivo para mim", itiu.
Sua nova vida teve de esperar até janeiro de 2010, quando a pena foi concluída e lhe foi permitido retornar ao mundo real.
Mente aberta 561x1c
Para ir da cadeia aos gramados, foi preciso mais do que força de vontade. E Martindale deixa clara a gratidão ao falar do Livingston.
"O clube teve a mente muito aberta para permitir que eu trabalhasse na instituição. Foram incrivelmente generosos ao me oferecer o trabalho e me trazer quando eu havia estado na prisão", avaliou.
E não é só o técnico da equipe que tem uma bagagem - recrutados por David Martindale, alguns jogadores também chegaram ao Almondvale com um ado semelhante.
"Não quero falar de nomes, mas eu pessoalmente contratei dois ou três atletas com um histórico criminal. Acho que às vezes as pessoas aram por experiências negativas que um pouco de fé pode consertar", argumentou.
"Tem sido fantástico dar a esses jogadores a mesma oportunidade que o Livingston FC me deu", festejou.
Para atuar oficialmente como treinador na Premiership, foi necessário receber uma aprovação da Federação Escocesa, que julgou seu histórico e o declarou "adequado", apesar da condenação por tráfico.
Simpático e sorridente, Martindale espera retribuir a confiança com conquistas. A primeira pode vir logo neste domingo, na final contra o St. Johnstone. Mas seus olhos também se enchem de brilho quando fala sobre conquistar uma das vagas do país na Europa League.
Alcançando esses objetivos ou não, o treinador pode afirmar que sua redenção está completa. A segunda chance que pediu, deitado em uma cela 17 anos atrás, chegou.
O assistente técnico, diretor de futebol e agora também treinador principal espera que sua jornada seja uma lembrança de que até mesmo um grande erro pode ser superado.
"A sociedade precisa perceber que nem todas as pessoas que estiveram na prisão são más pessoas. Elas só cometeram um erro", finalizou.